Doping

 

Corria o ano de 1975. O halterofilista finlandês Kaarlo Kangasniemi prepara-se para tentar um levantamento de I60kg. Caminha para o recipiente de magnésio, umedece ligeiramente as mãos e pega na barra. Levanta-a com dificuldade até ao pescoço, arfa de esforço enquanto prepara o segundo passo do levantamento, mas, uma vez iniciado o movimento que lhe permitiria levantar a barra por cima da cabeça, o músculo que rodeia a omoplata direita cede violentamente, desprotegendo a coluna do atleta. A carreira de Kangasniemi foi interrompida nesse instante, em que um impacto de I60kg o atirou irremediavelmente para uma cama de hospital, tetraplégico. A conclusão do inquérito imediatamente efetuado não deixou espaço para dúvidas: as constantes ingestões de anabolizantes haviam "esticado" o músculo de tal maneira que, numa situação de esforço, este cedera brutalmente. Os anabolizantes místicos que, anos antes, haviam adquirido virtudes de poção mágica - provavam a sua falibilidade...

A lista de tragédias é interminável. Em 1994, Mohammed Benaziza, culturista francês, morreu em pleno campeonato. Durante a demonstração, sentiu convulsões terríveis, vomitou sangue e caiu redondo. A autópsia foi avassaladora: misturados com as doses tradicionais de testosterona, Benaziza havia ingerido diuréticos em quantidades industriais. Sofreu complicações pulmonares e cardíacas, desidratou por completo e morreu em palco. Como um ilusionista a quem se descobrem os truques do ofício...

Como estes, existem dezenas de casos semelhantes. Nadadores com as fossas nasais destruídas, na seqüência de anos e anos de dopágem sistemática, por via nasal; culturista esculturais transformados em doentes raquíticos deformados, como resultado de doságens irregulares dos famigerados esteróides; ciclistas mortos por colapso ou irremediavelmente destruídos pelas diabólicas anfetaminas que "enganam o esforço"; futebolistas dependentes de morfina e restante família de narcóticos; atletas com o sistema nervoso alterado, sofrendo de aberrantes mutações genéticas. O quadro não é, de modo algum, bonito! Jorge Barbosa, responsável pelo Laboratório de Análises de Doping e Bioquímica, não tem dúvidas: A luta antidoping não tem as mesmas armas que o inimigo. Há laboratórios, já referenciados nos Estados Unidos, que se dedicam á pesquisa c experimentação de métodos de dopagem mais poderosos c menos detectáveis. Enquanto esta farsa continua, enquanto o inimigo tiver vastos meios financeiros à sua disposição, não podemos falar cm termos absolutos, de vencedores desportivos, sem suspeitar de toda c qualquer vitória. De resto, os números do controlo internacional valem... o que valem. Desde os jogos de inverno de Grenoble, em 1968, a Comissão Médica do COI realizou 14 225 testes, dos quais resultaram, apenas, 51 controlos positivos! O próprio Bem Johnson havia efetuado 19 controlos, entre 1986 e 1988, todos negativos, antes de ser "apanhado" em 88, apesar da sua confissão posterior de que se dopava sistematicamente desde I981! Em I980, Manfred Donicke, médico do COI, recolheu amostras duplicadas da urina de diversos vencedores das provas dos jogos de Moscovo. Testou-as paralelamente ao controlo oficial, usando uma nova tecnologia, e o resultado foi brutal, ainda que camuflado: 15 dos vencedores haviam sido submetidos à mítica testosterona! Oficialmente, ninguém foi, sequer, acusado. . .

Recentemente, foi a vez de Pat Connolly treinadora da equipa feminina norte-americana dos jogos de Los Angeles, revelar: Em 1984, das 50 atletas que compunham a equipe olímpica de atletismo, 15, entre as quais diversas medalhadas, estavam sob efeito de esteróides! Nunca foram controladas positivamente! Jean Marie Leblanc, diretor do Tour de France, levantou, já, a suspeita: Não acuso ninguém de tomar Epo, mas, efetivamente, de há quatro anos para cá, a velocidade das etapas e as médias atingidas são espantosas! Demasiado espantosas, até. . . Dan Philibert, barreirista presente em Atlanta, foi mais longe e, em entrevista à "Sciences et Avenir", ironizou: Provavelmente, num dia próximo, realizaremos competições paralelas: .de um lado, os dopados; do outro, os que não se querem submeter a essas drogas!... Mas há mais: hoje em dia, substâncias, como o hormônio de crescimento e a eritropoitina, e métodos de dopagem, como a dopágem sangüínea, são impossíveis de detectar na análise da urina. A ingestão de esteróides, aliás, se interrompida com antecedência, tem garantias de passar impunemente no controlo. Talvez, por isso, seja hipócrita falarmos de um desporto de alta competição cada vez mais forte, cada vez mais alto, cada vez mais poderoso! Por isso, mais que nunca, Jorge Barbosa assume a questão com uma frontalidade arrepiante: Chegou a altura de definirmos o que queremos do desporto. 5e quiserem, legalizem o Doping, tornem-no acessível c digam aos atletas: morram, se quiserem ou se acharem que uma vitória merece colocar a vida cm risco! Mas enquanto vivermos nesta farsa, cm que sabemos que há muitos atletas dopados que nos fogem por entre os dedos, c, simultaneamente, se transmitem estas imagens falsas de ídolos sobredotados, que mais não são do que produtos artificiais, não estamos a ser honestos com o público. Gomes Pereira, um elos principais técnicos portugueses no âmbito ela metodologia elo treino, desloca a questão

para outras águas: O atleta dopado é um reflexo da sociedade, já de si, dopada. Para dar resposta á competição do dia-a-dia, o indivíduo normal recorrer a tranqüilizantes, a anti-depressivos c a calmantes. Ora, o desporto não é uma ilha. Por isso, quando me perguntam se os meus atletas competem dopados, respondo, apenas, que eu não os dopo. Mas não posso interferir dai que eles não recorrem a substâncias ilegais, de acesso fácil. É preciso, contudo, lembrar que aos atletas exige-se tudo c desculpa-se pouco. E a tentação é tão grande... Daí a necessidade de agir, também, em termos de formação da cultura desportiva da sociedade. Jorge Barbosa não nega esta prioridade, mas recorda as suas lacunas: Pergunto-me contentemente: será possível isolar os "bons" dos "maus"? Poderei correr o risco de falar a 500 atletas e avisá-los dos malefícios do Doping, descurando a investigação no controlo? E se, desses 500, um não se convence e ganha a prova? Quem vai convencer os outros de que o desporto tem de ser limpo, saudável e sem batota?. . .

 

Sangue, Suor e... Doping

Em função da luta desigual, avançaram-se nos últimos anos, varias soluções. Uma delas é a análise sangüínea, aliada ao controlo da urina do atleta, solução esta que, "a priori", seria bem mais taxativa do que uma análise isolada. "A prion"...

É que há questões éticas aparentemente incontornáveis. Está devidamente provado que a análise sangüínea é mais sensível do que a simples análise urinária, que capta um líquido expelido depois de várias transformações. Gomes Pereira concorda com a sua fiabilidade, mas relembra que, com a urina, recolhe-se, somente, um líquido fisiológico expelido. Para fazer uma análise sangüínea, ter-se-ia de "invadir" o organismo do atleta e forçado a recolher uma amostra. E, naturalmente, os atletas terão todo o direito de recusar uma intervenção médica não essencial. Além disso, Gomes Pereira acusa outro inconveniente: Alguém calcula o que custaria, em dinheiro, em tempo e em (re)formação de pessoal, uma adaptação súbita dos laboratórios a este novo método? João Paulo Almeida, diretor do Centro de Medicina Desportiva, por outro lado, desmistifica a análise sangüínea, uma vez que a urina já é suficientemente fiável. Há substâncias, como a eritropoitina, que poderiam ser detectadas com este controlo, mas nem isso está provado. De resto, a Federação Internacional de Pentatlo Moderno é a primeira e única federação internacional que promove, já, colheitas sangüíneas para detectar usos abusivos de farmacológicos. Ora, se ainda não se chegou a um consenso, por que razão já se olha para a análise sangüínea como a solução ideal? Jorge Barbosa, por outro lado, confirma que outra amostra orgânica seria ótima para detectar substâncias, por enquanto, envoltas num véu de secretíssimo. Mas recorda que a experiência de Lillehammer não foi tão satisfatória quanto isso. E, a talho de foice, lembra que a análise sangüínea não é remédio para todos os males. Enquanto muitos atletas se submeterem, em laboratórios privados, a testes de despistagem e, só então, confirmem a sua presença nas grandes competições, o desporto está viciado. E os atletas "apanhados" no controlo não serão mais do que distraídos ou incautos, que representam, apenas, a ponta de um negro iceberg. . .